Argentina: o último pulmão de Buenos Aires

Vizinhos se mobilizam contra a degradação de um dos últimos espaços verdes da Grande Buenos Aires frente a mais uma grande obra de infraestrutura

“Somos vizinhos que moram em um lugar pequeno, em um cantinho da Argentina, muito populoso, mas ainda pequeno. Somos como muitas outras pessoas do país e da América que estão lutando por seus lugares”, afirma a bióloga Zulma Pereira, uma vizinha autoconvocada da Comunidad por el Pulmón Verde Esperanza, grupo que defende o território nativo do bairro Esperanza, no município de Virrey del Pino, no distrito de La Matanza, a 39 quilômetros da capital de Buenos Aires.


Conhecida como uma das grandes metrópoles da América do Sul, o crescimento populacional da capital argentina se iniciou apenas depois da Independência em relação à Espanha. No grande clássico da literatura política latino-americana, As veias abertas da América Latina, o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano narra como Buenos Aires se transformou na região mais populosa do país e seu centro econômico.


“No século XVII ainda era uma grande aldeia de 400 casas, apoderou-se da nação inteira a partir da Revolução de Maio e da independência. Era o porto único, e por ele tinham de passar todos os produtos que entravam e saíam do país. As deformações que a hegemonia portenha impôs à nação se notam claramente em nossos dias: a capital abarca, com seus subúrbios, mais de um terço da população total da Argentina”, escreveu Galeano, no livro publicado em 1971.


As dinâmicas do capitalismo selvagem, com uma economia voltada para satisfazer os desejos do mercado internacional, levaram Galeano a relatar esse crescimento na década de 70. Quase meio século depois, o Censo argentino de 2010, mostrou que Buenos Aires tem 2.890.151 habitantes e, claro, não está excluída dos problemas provenientes da urbanização, que deixou um rastro de destruição ambiental. Os dados da Dirección General de Estadística y Censos do Governo da Cidade de Buenos Aires mostram que, em 2021, para cada mil habitantes, há 0,67 hectares de espaço verde — o que não chega a um campo de futebol.

A grande obra de degradação

Oficialmente, a Argentina é dividida em 18 regiões naturais ou ecorregiões. Entre esses diversos ecossistemas, sua capital está localizada em uma área de Pampa, que abrange também o sul do Brasil e o Uruguai. Trata-se de um bioma que perdeu 16,3% de sua vegetação nativa apenas entre os anos 2000 e 2019. Atualmente, há apenas 43,2% de sua cobertura original. Essas são as informações publicadas, em abril de 2021, pela organização MapBiomas em uma iniciativa que reuniu pesquisadores dos três países.


Mas a degradação do Pampa no lado argentino se expande para toda a Região Metropolitana de Buenos Aires (RMBA) e segue em avanço contínuo. No bairro Esperanza, está o que é considerado como o “último pulmão verde” da localidade.


Essa ideia deu o nome à Comunidad por el Pulmón Verde Esperanza, nascida em meados de 2021, com um grupo de três vizinhos autoconvocados que não se conheciam, mas se uniram para defender o lugar que vivem de mais uma enorme obra de infraestrutura.


O projeto Autopista Presidente Perón, projetado pelo Ministério de Obras Públicas da Argentina, tem o objetivo de construir 83 quilômetros de estrada para conectar 12 municípios da Província de Buenos Aires. Como explicou David Pajón, integrante do movimento, a obra afeta diretamente o Pulmão Verde, que tem uma área de 184 hectares. A Rota Nacional Número 3 comunica do Sul ao Norte da província, da Terra do Fogo ao rio Matanza, na região do Pulmão.


“O laranja e o vermelho são a área [indicada no mapa abaixo] onde vai passar uma nova rodovia. Claro que uma rodovia é um progresso para todos nós, mas também significa a destruição de lugares verdes, que é o que queremos defender. É importante proteger todo esse pedaço verde, que é o Pulmón.”, afirma.

Zulma explica que a rodovia é um grande desenvolvimento para a região.“No entanto, para nós, é de grande importância o funcionamento que tem o ecossistema desse espaço verde, porque já se trata de uma região superpovoada. Estamos falando de uma localidade dentro de La Matanza, na Província de Buenos Aires, que é super populosa e já não existem espaços verdes e zonas de oxigenação.”

Uma crise úmida

O rio Matanza-Riachuelo, que corta a região, é simbólico. Trata-se de um dos dez rios mais contaminados do mundo, de acordo com o ranking elaborado pelas organizações Green Cross International e Blacksmith Institute, publicado em 2013. Uma década depois, os problemas com a poluição de suas águas continuam. Com 64 quilômetros de extensão, o Matanza-Riachuelo nasce em Buenos Aires e é afetado há mais de um século.


No livro Ambientes e territórios: Uma introdução à Ecologia Política, o geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcelo Lopes de Souza, aponta a situação dessa bacia hidrográfica como um exemplo de injustiça ambiental, em que a população local, majoritariamente pobre, é a mais prejudicada, ao mesmo tempo que se tornou uma das principais lutas socioambientais da história da Argentina. Sua contaminação está ligada com a falta de saneamento básico, com a atividade industrial e descarte de lixo a céu aberto.


Nesse sentido, David e Zulma comentam que o Pulmón tem uma função de zona úmida e explicam que a aprovação da Ley de Humedales é uma demanda chave da luta ambiental no país atualmente porque estabelece os requisitos mínimos para a conservação, uso racional e sustentável desses ecossistemas de áreas úmidas ‒ como pântanos, charcos, pauis, sapais e turfas ‒, sendo temporárias ou permanentes.


Respire pelo Pulmón

Em busca da defesa do lugar onde vivem, a Comunidad por el Pulmón Verde Esperanza promove caminhadas pelo local, convidando mais vizinhos para conhecer a luta, oferece palestras nas escolas para contar sobre a flora e fauna nativa, realiza a ocupação do Pulmón com aulas de yoga e teatro, além de fazer jornadas de limpeza, em que retiram o lixo que estão em direção ao córrego, e elaborar trilhas de identificação de aves, uma vez que ali existem espécies que não há em outros lugares.


Enquanto comunidade pequena e ainda sem acesso a recursos jurídicos para defender o território, como contratação de advogados especializados em meio ambiente, David e Zulma explicam que o grupo tem o objetivo claro de engajar outras pessoas da população local na preservação e utilização da área. “Há muita gente que passa por ali, mas não entra no Pulmón. Queremos que a comunidade integre e tenha o direito de pertencer, porque essa é a única maneira desse espaço se conservar. A biodiversidade está intacta e nativa, mas temos que protegê-la porque ela não consegue sozinha. Vizinhos e vizinhas têm o direito de defendê-la, além de ser um processo de nos reeducarmos como sociedade”, aponta Zulma.


O chamado que esse grupo de vizinhos sente deixa uma lição para aqueles que desejam se engajar na luta por suas comunidades. “Não somos loucos, somos simplesmente pessoas que lutam com companheiros para que possa existir harmonia com a natureza. Um mundo sem árvores, sem água e sem terra fértil é inútil. Ter um celular ou um carro super luxuoso é inútil sem nem ter água potável para beber.”