Uruguai: uma cidade pequena no centro de uma batalha judicial pelo meio ambiente

Em meio à especulação imobiliária, obras de infraestrutura e o turismo, um grupo de vizinhos protegem a praia de um município de menos de cem habitantes

Conhecido como um dos países mais progressistas na América Latina, o Uruguai acumula uma série de conquistas de movimentos sociais, como a legalização da maconha e a legalização do aborto. Bem no sul do continente, em um ecossistema quase completamente de pampa, propício para agropecuária, o turismo também é uma das principais atividades econômicas.


Desse modo, a economia uruguaia revela a valorização de um componente com muita competição – a terra. “Caminhando com as mãos às costas, Artigas ditava os decretos revolucionários de seu governo. Dois secretários (não existia papel-carbono) tomavam nota. Assim nasceu a primeira reforma agrária da América Latina, que seria aplicada durante um ano na ‘Província Oriental’, hoje Uruguai, e que seria feita em pedaços por uma nova invasão portuguesa. (...) O código agrário de 1815 – terra livre, homens livres – foi ‘a mais avançada e gloriosa constituição’ entre todas que os uruguaios chegariam a conhecer”. No trecho acima de As Veias Abertas da América Latina (1971), o jornalista uruguaio Eduardo Galeano revela duas características relevantes sobre o país: a terra, como em boa parte do mundo colonizado, tem um valor essencial; e o Uruguai desde muito cedo liderou algumas vanguardas.


Não em vão, a sociedade se organizou para impedir um projeto de mineração. “Uruguai não escapa do modelo extrativista que temos em toda América do Sul. Tivemos um episódio em que a Aratirí, mineradora subsidiária do grupo anglo-suíço Zamin Ferrous, em que se queria instalar um megaprojeto de mineração a céu aberto em metade do país. Não sei exatamente quantas organizações, mas houve uma mobilização em nível nacional para que não acontecesse”, afirma Sandra Corbo, integrante da associação civil Nativos Punta Colorada.


Têm sido muitos projetos contra os quais os cidadãos levantaram a voz: fracking, uso excessivo de agrotóxicos e até para que o trigo transgênico, aprovados no Brasil e na Argentina, não ingresse no país.


O belo litoral na mira da devastação

A partir de uma série de inquietações comuns, os vizinhos da pequena cidade de Punta Colorada, no Departamento de Maldonado, começaram a se reunir para debater os problemas socioambientais locais desde maio de 2019. Assim nasceu o Nativos Punta Colorada, que foi legalmente considerada uma associação civil a partir de janeiro de 2022.


“As problemáticas do lugar onde vivemos nos convocaram. Vimos que estavam relacionadas ao ecossistema, como o desmatamento da mata nativa, a contaminação da água, a preservação da faixa costeira e das dunas”, conta Alejandra Battocletti. O grupo de vizinhos também passou a integrar a Red Unión de la Costa, com outras organizações litorâneas.


O problema que a vizinhança lida é similar por toda a costa. Trata-se de um processo de especulação imobiliária voltada para o turismo, seguindo os passos de outra cidade de Maldonado, uma muito mais conhecida ‒ Punta del Este. O impacto para a população local de Punta Colorada é muito maior, uma vez que é um município de 92 habitantes (Censo 2011). Nos últimos anos, a Intendência Departamental de Maldonado tem aumentado os incentivos à construção, com exoneração tributária e flexibilização urbana. Muitos dos beneficiados são os empreendimentos de turismo.


Nesse sentido, também há as obras de infraestrutura do governo, que nem sempre leva em conta as permissões ambientais e os informes técnicos para realizá-las. É o que o Nativos Punta Colorada tem denunciado ao longo deste ano. Em 2020, as obras de remodelação de uma avenida se iniciaram na praia vizinha, San Francisco, do lado contrário ao da localidade, até que, em 2021, a construção chegou à Punta Colorada. “Começamos a perceber que havia algo errado na rota, que foi se alargando em direção à orla, com implementação de ciclovia e plantação de espécies vegetais exóticas”, comenta Andrés Blanco.


Até que se descobriu por meio da solicitação de documentos em portais de transparência que a Intendência de Maldonado não tinha elaborado nenhum plano de proteção das dunas e dos ecossistemas costeiros, além de existirem informes contrários à realização da obra por parte do Ministerio de Ambiente. A união junto a outras organizações locais levou o episódio à Justiça, pedindo uma medida cautelar preventiva para a suspensão das atividades, o que foi concedido na primeira instância.

Blanco explica que a Intendência adotou um comportamento de ataque aos cientistas que estudaram e apoiaram a causa. “Primeiro o fizeram por escrito. Depois, foram à Justiça com uma denúncia penal por supostos falsos testemunhos. Não foi iniciado nenhum processo ainda porque os órgãos podem entender que não há razão para que pesquisadores sejam alvo de processo penal. Mas isso também desatou um grande movimento de solidariedade entre as pessoas.”


Qual futuro?

Enquanto o caso tramita, os vizinhos de Punta Colorada seguem na luta para defender o meio ambiente costeiro, entendendo principalmente que defender cada território é importante diante da destruição massiva no mundo todo. “O mundo está acabando, por vários fatores, estamos diante das mudanças climáticas. Temos que mudar o modelo. Na nossa experiência como grupo, vimos que somos poucos, mas que se armando em rede as coisas funcionam”, afirma Battocletti.


Para a vizinha Andrea Oliveira, os modelos que destroem o planeta são os que destroem vínculos sociais, de contato com a natureza e os vínculos ecológicos: “Estar juntos, reunidos e fazer pequenas conquistas é uma força pelo futuro. Parece pequeno, mas é uma mudança enorme o que estamos fazendo, poder compartilhar comidas, cozinhas juntos, construir nossas casas, ter jardins, preservar as plantas, cuidar dos animais e, assim, cuidar de todos os vínculos, lembrando das concepções dos povos originários”.