Bolívia: a floresta chama por ajuda

A sociedade civil organizada na Bolívia ouviu o socorro do bosque no terceiro país onde mais se perde áreas florestais

Entre o seco e o úmido, entre a altitude dos Andes e as planícies da Amazônia está a complexidade dos ecossistemas no território compreendido como Bolívia. A região representa apenas 0,2% da superfície do mundo, mas abriga cerca de 40% de sua biodiversidade, segundo o 5º Informe Nacional, publicado em 2015 pelo Ministério do Meio Ambiente e Água (MMAyA) e Ministério das Relações Exteriores.


Suas riquezas naturais também são símbolo de sua exploração histórica. É ao oeste boliviano que se encontra Potosí, região de onde o Império Espanhol verteu rios de prata entre os séculos XVI e XVIII. “A Bolívia, hoje um dos países mais pobres do mundo, poderia vangloriar-se – se isto não fosse pateticamente inútil – de ter nutrido a riqueza dos mais ricos países. Em nossos dias, Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia”, escreveu o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, em 1971, em As Veias Abertas da América Latina.


Depois da prata, veio o estanho. A degradação ambiental e social causada pelo capital se estende até hoje por meio da mineração nas áreas de relevo mais alto, que resultam na remoção e deslocamento de comunidades indígenas. Nas mais baixas, ao leste, estão os bosques, que, como na maioria das regiões de florestas, sofrem um ataque progressivo do desmatamento e de incêndios florestais.

No departamento de Santa Cruz, porção oriental da Bolívia e próximo à fronteira com o Brasil, está localizado o Bosque Seco Chiquitano, uma zona de transição entre a Amazônia e o Chaco. A região também é tradicionalmente conhecida economicamente pela indústria agropecuária, que avança suas atividades sobre uma das maiores florestas tropicais secas do mundo.


Por isso, houve a necessidade de se firmar um pacto – El Llamado Del Bosque. Este é o nome de uma ONG que representa a coalizão da sociedade civil boliviana para defender o território em que vivem. “Em 2017, se iniciou uma campanha de coleta de assinaturas na praça principal de Santa Cruz de la Sierra, em que pessoas de diferentes áreas, desde políticos a figuras públicas assinaram o Pacto do Bosque”, explica Jancarla Ribera, especialista em turismo sustentável e colaboradora da organização.

Vanguarda, mas nem tanto

Embora o país tenha chegado na primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, que aconteceu em junho de 1992, no Rio de Janeiro, com uma recém-lançada Lei do Meio Ambiente (Lei N° 1333), de abril do mesmo ano, que prevê a conservação dos ecossistemas, o desenvolvimento sustentável e dispõe sobre a gestão ambiental nacional, e tenha lançado o Marco Legal da Mãe Terra e Desenvolvimento Integral para o Bem Viver (Lei Nº300), em 2012, o que revela uma vanguarda legislativa na América do Sul, na prática, a preservação não tem sido uma prioridade e os dispositivos estão sendo driblados.


Segundo o Sistema de Información y Monitoreo de Bosques (SIMB), plataforma do MMAyA, em 2000, o Bosque Chiquitano possuía 55.097.371 de hectares; em 2017, o número era 51.391.258. O desmatamento do bioma é o terceiro maior no país, ficando atrás somente da Amazônia e do Grande Chaco.


Em relação à toda cobertura florestal, o relatório do Global Forest Watch, baseado nos dados coletados pela Universidade de Maryland, em 2021, a Bolívia foi o terceiro país onde mais se perdeu florestas tropicais primárias. O Departamento de Santa Cruz é o departamento que mais sofreu com as queimadas, além de ser o local de expansão da agricultura em larga escala e da atividade pecuária. O documento explica que os incêndios servem, em grande parte, para abrir espaços para o monocultivo de soja e para pastagem.

Nesse sentido, Gina Mendez, diretora da organização El Llamado del Bosque, ex-prefeita de Santa Cruz de la Sierra e ex-ministra da Justiça (2002-2003), afirma que a atuação do governo boliviano acaba sendo conivente: “Foram aprovadas normativas que promovem o desmonte das florestas, que legalizaram e incentivam a expansão da fronteira agropecuária”. É o caso da Lei Nº 741, de 2015, que até hoje não foi revogada e permite o uso do fogo por até 20 hectares em pequenas propriedades, mas sem que seja necessária a apresentação de planos de manejo e gestão integral. “Eu diria que é uma devastação institucionalizada dos recursos naturais”, completa.

As consequências já são sentidas. A engenheira ambiental e coordenadora da ONG, Carla Fernández, ressalta que não se trata apenas do meio ambiente, mas também da qualidade de vida das pessoas, uma vez que as secas prolongadas são resultado dos incêndios florestais e afetam diretamente o abastecimento de água das comunidades.


“Enquanto esses desastres estão sendo ocasionado pela expansão agropecuária ou mesmo por obras de infraestruturas do governo, as autoridades governamentais têm culpado as mudanças climáticas e o aquecimento global por eles, sendo que, na realidade, é uma consequência de tudo, com uma política econômica baseada no extrativismo e em um modelo desenvolvimentista”, pontua Fernández.


Já Mendez relembra que, em curto prazo, pode-se gerar uma produção agrícola, mas, em longo prazo, a destruição ambiental também prejudicará essa atividade com períodos de secas cada vez mais profundas.


Respondendo ao chamado

É nesse contexto que a sociedade civil organizada luta para defender o Bosque Chiquitano. El Llamado del Bosque promove ações de reflorestamento e educação ambiental. “O programa Sembrando Esperanza [Semeando Esperança] nasce em 2019, como consequência das secas e dos incêndios florestais que destruíram milhões de hectares do bosque e arrasaram com 90% das áreas cultivadas nas comunidades. Isso significou que praticamente toda a fonte principal de renda dos moradores foi destruída”, relata Fernández.


Diante desse cenário, o programa busca a restauração ecológica das áreas cultivadas, além de promover o ecoturismo para gerar receita. “Queremos conseguir transformar a agricultura tradicional em uma agricultura sustentável, além de que a população local aprendam e conheçam o valor da floresta para que sejam os protagonistas na preservação e se tornem guardiões.”


Outra iniciativa da organização é o Bosque Escola, uma estratégia educativa voltada para famílias a partir de uma combinação de oficinas artísticas e de formação sobre os conceitos ecológicos, ambientais e culturais, além de excursões didáticas. Assim, tanto crianças quanto adultos participam do processo de proteger o meio ambiente, conta Jancarla Ribera: “Vimos a necessidade de sensibilizar as novas gerações sobre os valores ecológicos e a realidade ambiental que atravessamos, da qual somos afetados na Bolívia. Enquanto acompanham os filhos, os pais também vão construindo um conhecimento sobre os efeitos das mudanças climáticas, o impacto do desmatamento no ciclo da água, nas secas extremas e na perda de biodiversidade.”


Para Fernández, defender a floresta é defender a própria vida e que as gerações futuras tenham uma boa condição de vida. “Por isso, fazemos um convite aberto para que todas as pessoas possam escutar o chamado do bosque e que comecem a agir já, porque ele nos está pedindo.”


E Mendez completa: “Unidos somos fortes, cada um de nós representa a oportunidade de fazer a diferença nos temas de conservação, que é o que o mundo precisa. Assim, ir acompanhando diferentes organizações que estão trabalhando e fazer parte. Há um chamado, a floresta está nos chamando, precisamos escutar”.