Chile: uma luta contra as “florestas” erguidas por Pinochet

O fardo da ditadura ainda permanece, na Constituição e no modelo florestal

De um lado as maiores formações montanhosas da América do Sul – a Cordilheira dos Andes –, do outro, mais de 6 mil quilômetros de litoral que dão para o Oceano Pacífico. Na estreita faixa de terra entre os dois está o Chile, onde a população vive encurralada pelo imperialismo e pelo neoliberalismo.


“Sem dúvida, um dos fatos mais importantes dos anos 70 em nossas terras foi uma tragédia: a insurreição militar que em 11 de setembro de 1973 derrubou o governo democrático de Salvador Allende e submergiu o Chile num banho de sangue.” Na edição de 1978, As Veias Abertas da América Latina, o escritor uruguaio Eduardo Galeano traz novas análises sobre os sete anos seguintes à primeira publicação, em 1971. Foi nesse período que ele viu o Chile concretizar o que denunciava na primeira edição: a subserviência ao capitalismo selvagem.


A história chilena está marcada pelos interesses da Espanha em seu primeiro momento, da Inglaterra até a primeira metade do século XX e dos Estados Unidos desde então. Enquanto na publicação original Galeano relembra temas como a exploração de cobre, na segunda, o escritor aponta o papel fundamental dos EUA na queda de Allende e no governo ditatorial de Augusto Pinochet (1973-1990).


Com Pinochet, o país se tornou um representante ferrenho do modelo neoliberal. Isso significa, sobretudo, que o meio ambiente e a natureza não passam de recursos a serem explorados.


Embora tenha tido revogações e novas emendas, a Constituição chilena é até hoje a Carta herdada desse período. Nela, nada está acima do direito à propriedade, conta Juan Pablo Toledo, engenheiro em biotecnologia vegetal e ativista socioambiental na Red por La Superación del Modelo Forestal. “A Legislação antiga de Pinochet é precisamente o que permite a concentração de propriedade. Nada se impõe a ela, seja o bem estar do Estado, o controle de monopólios, o pluralismo ou o conhecimento. É isso que faz, por exemplo, Andrónico Luksic, da família mais rica do Chile, poder controlar uma empresa de mineração, um dos bancos mais importantes do país e o principal canal de televisão.”


Não é exatamente uma floresta

Foi a partir da ditadura que também se estabeleceu o que se chama de “modelo florestal chileno”. Apesar do nome parecer uma política positiva, na verdade, trata-se da monocultura de eucalipto e pinheiro, que resulta nos danos ambientais. “A indústria florestal é a primeira que se instala no experimento neoliberal no país. Significa uma estratégia de suposto desenvolvimento, que, ao fim, gera empobrecimento e destruição do território. Enquanto os pinheiros têm rotatividade de 20 anos, com produção de madeira. A rotação de eucaliptos dura oito a doze anos, com objetivo de produzir celulose”, explica Toledo, que vive em BioBio, uma das regiões mais afetadas pelo monocultivo dessas plantas, junto a Araucanía e Los Ríos, todas na região central do país.


A iniciativa da qual Toledo faz parte luta pela superação desse modelo devido aos impactos causados ao meio ambiente e à saúde humana. Isso se deve ao fato de que, para extrair a celulose, são utilizados produtos químicos que contaminam a água, o solo e o ar. A Arauco, principal produtora de madeira e celulose, já foi multada em mais de 4.389.815.232 pesos chilenos (R$ 23.940.964 – cotação do dia 10 de fevereiro de 2020, data da sentença) apenas por infrações ambientais nas instalações de Valdívia, Região de Los Ríos, desde 2014.


O problema mais recente envolvendo a empresa foi no dia 12 de novembro deste ano, na comuna de Constitución, na Região de Maule, onde a autoridade sanitária local, a Seremi de Salud del Maule, anunciou o funcionamento da fábrica, após uma válvula permitir emissões de gases e líquidos. O caso foi denunciado pelos vizinhos do complexo industrial, que também relataram tontura e vômito por intoxicação.

O quase futuro

O mal estar social causado pelo neoliberalismo e pela herança pinochetista culminou, no dia 18 de outubro de 2019, no maior protesto do país pós-ditadura, com cerca de 1,2 milhão de pessoas, segundo os dados oficiais do governo. A manifestação se estendeu até março de 2020 e foi pausada devido à pandemia de covid-19. No período em que ocorreu, a repressão do Estado deixou 34 mortos e mais de 2 mil feridos.


O resultado da mobilização, no entanto, foi o Plebiscito de 2020, que determinou a formação de uma nova Constituição, para coroar a crise e o fim da gestão de Sebastian Piñera (2019-2022), que junto à sua família está na quinta colocação de pessoas mais ricas do Chile, de acordo com a lista publicada pela Forbes em abril deste ano.


“A população chilena por muito tempo esteve indefesa diante do extrativismo, diante da violência da mineração, da indústria florestal e do agronegócio. Por muito tempo, as pessoas tentaram se defender e se organizar. Posso dizer que agora aprendemos, entendemos como funciona o extrativismo e como nos mobilizar. Agora sabemos como lutar e demonstramos que podemos ganhar muitas lutas”, afirma Toledo.


O novo cenário elegeu, em dezembro de 2021, o presidente mais jovem da história do país, Gabriel Boric, com 35 anos e representante da Frente Ampla de esquerda. Empossado em março, seu principal desafio passou pelos trabalhos da nova Constituinte.


Mas, ao contrário da expectativa do campo progressista, a proposta da nova Carta foi rejeitada por 61,87% da população no referendo votado em setembro. Tratava-se de uma Constituição “ecológica”, com o conceito de “direitos da natureza”, responsabilizando o governo pelo enfrentamento às mudanças climáticas, além de considerar a água um direito humano, que até então poderia ser privatizada como qualquer outro bem de consumo. A proposta também tornaria o Chile um Estado plurinacional, dando aos povos indígenas autonomia em seus territórios e tornando suas línguas como oficiais.


Para o integrante da Red por La Superación del Modelo Forestal, um dos fatores da rejeição é a dificuldade do movimento progressista em conseguir falar massivamente com os cidadãos, não alcançando a mesma quantidade de pessoas que os movimentos contra a proposta: “Não temos rádios, não conseguimos comunicar por meio da televisão ou qualquer grande meio de comunicação. Temos os meios digitais, onde conseguimos publicar algumas notícias, mas ficamos totalmente indefesos diante da campanha de desinformação, que foi abundante durante o processo constitucional. A campanha do ‘rechazo’ tinha muitos recursos monetários e começou muito antes com publicidade no Youtube. Além disso, os monopólios de imprensa são muito favorecidos pela antiga Constituição”.


Apesar do revés, Toledo mostra que a luta continua e estimula qualquer pessoa que queira se engajar na defesa socioambiental. “Minha mensagem é: resistam, não se rendam. Não é fácil, mas não é impossível. Existem muitos casos em que a comunidade unida conseguiu vencer empresas. Quem diz que não podemos fazer nada contra elas está mentindo. Porém, é preciso estudar o problema, juntar-se aos amigos, vizinhos ou famílias para entender o que está acontecendo e principalmente não brigar uns com os outros.”